A Primeira Corrida da América do Sul
Bom... antes de entrar nesta história, cabe contar uma outra história. Em 1893 na capital paulista, no meio dos seus 200 mil habitantes, transitando na Rua Direita estava um carro com rodas de borracha, funcionando a plena caldeira (hoje um carro destes custa algo em torno de 1.5 milhão de dólares para cima!!!). Imagine isso?! Alguns anos depois, em 1897, Santos Dumont circulava em São Paulo com seu Peugeot (importado da França por Alberto Santos-Dumont - esse automóvel foi importado em 1891, mais para observações da parte mecânica, do que efetivamente, para andar com ele - há que se recordar que Santos-Dumont participou em 1898 de uma corrida de Paris a Amsterdã - tem-se notícia que a primeira corrida oficial foi na França, em 22/6/1894 entre Paris e Rouen, organizada por Pierre Giffard, editor-chefe do Le Petit Journal, tendo como vencedor o Conde Jules Félix Philippe Albert de Dion - que ganhou com um trator - houve confusão!!!), sendo que, no mesmo ano no Rio de Janeiro, Lembrem-se que, pelas ruas do Rio de Janeiro, um ano antes (1897), José do Patrocínio, desfilava um carro movido a vapor (conta-se que José do Patrocínio resolveu ministrar aulas de direção a Olavo Bilac, e esse braço duro, mandou o carro numa árvore, na Estrada Velha da Tijuca - dando risadas, Bilac comemorava o fato de ter causado o primeiro acidente no Brasil). Na virada do século, Fernando Guerra Duval foi o primeiro a circular nas ruas íngremes de Petrópolis, com um Decauville de 6hp, tendo a benzina como combustível.
Mas voltando a São Paulo, a primeira legislação normatizando o uso do automóvel, foi instituída por Antonio Prado em 1900 (em 1903 já tinham 6 carros, e a Prefeitura de SP tornou obrigatória a vistoria veicular e identificar os carros com chapas ou licenças e em lugares estreitos e com adensamento populacional, a velocidade não poderia ultrapassar os 30kph - ou seja - uma velocidade de um homem), instituindo a primeira taxa sobre o tema (Henrique Santos-Dumont, foi o primeiro a solicitar ao referido prefeito a isenção do pagamento da taxa, ressaltando o péssimo estado das ruas). Pronto, a baixaria foi instituída e o Prefeito cassou a licença e a placa de Santos-Dumont (essa placa era a famosa P-1, que ficou - depois - com o Conde Francisco Matarazzo). A primeira carta de habilitação foi dada em 1904 a Menotti Falchi, proprietário da então fábrica de chocolates Falchi - nesta época já tinham uma enormidade de carros: 83! Chegou-se a montar em 1907 (em escala industrial - nas devidas proporções), pelos construtores de carruagens Luiz Grassi & Irmão, carros da marca Fiat (em 1927 havia na cidade de SP incríveis 2.568 automóveis!!!). Mas 1908 é que o marco foi feito aqui, inclusive nos EUA, pela fabricação do Ford T, assim como a Delco que fabricava a primeira Bobina e o Distribuidor.
Há que se ressaltar que 3 carros já corriam em 1902 no Hipódromo da Mooca na cidade de São Paulo e em 1905 na cidade do Rio de Janeiro, no Largo do Machado, mas só em 1908 houve a primeira corrida oficial, no chamado Circuito Itapecerica (75kms), onde apinharam 10 mil espectadores só para ver este evento (Sylvio Alvares Penteado, cunhado de Prado Junior, foi quem ganhou, com um Fiat 40hp, com velocidade média de 55kph, em 1h30m55ss). Detalhes logo abaixo.
Fotograma do filme da corrida em SP - 1908
Há que se lembrar, também, que no mesmo 1908, o Conde Lesdain, fez o primeiro Raid entre Rio de Janeiro - São Paulo (mais ou menos 700kms), em 33 dias (num Brasier de 16 cavalos - se havia barreiras, ele as explodia com banana de dinamite - belo raid), e no mesmo ano, Antonio Prado Júnior, fez o que se chamou de "Caravana de Bandeirantes sobre rodas de borracha", ou seja, foi de São Paulo (na verdade São Bernardo dos Campos) até Santos (na verdade Cubatão), pelo chamado Caminho do Mar (em 36 horas). 1908 foi o marco, pois, foi criado o Automóvel Clube de São Paulo, e na cidade do Rio de Janeiro, foi criado o Automóvel Club do Brasil.
Mas antes de entrar na corrida, temos que observar não só o clima histórico da época, mas ter atenção dos preparativos deste evento. Em 1908 o então Secretário da Justiça e Segurança Pública do governo do Presidente de São Paulo Jorge Tibiriçá, Washington Luís Pereira de Souza, com 38 anos (em 1926 ele seria Presidente do Brasil, acabando com a República Velha - o seu lema era "governar é construir estradas"). Aos domingos, era um dos seus prazeres fazer o que ele chamava de "excursões pelos arredores de São Paulo", com seu automóvel - um Berliet, com sua esposa um motorista e um ajudante (especula-se que era um mecânico). Numas dessas "excursões", ele percorre o que viria a ser o Circuito de Itapecerica. Washington Luís leva a idéia ao Automóvel Club de São Paulo (ACSP), numa reunião onde estavam presentes Antonio Prado Júnior, Sílvio ÁLvares Penteado, José Paulino Nogueira Filho, Numa de Oliveira e Clóvis Glicério (vocês conhecem pelo menos esses nomes de ruas e praças). Washington Luís alertou que precisava consertar alguns trechos e com a cooperação do Prefeito Barão de Duprat tal feito é realizado.
No dia 11 de junho o ACSP é fundado e no dia seguinte é formado um comitê para organizar a corrida, que seria no dia 14 de julho (em homenagem à independência da França, pátria do automobilismo). Carros pagavam 100 mil réis e motos 50 mil réis, para participarem. Eram 5 categorias e só poderiam conduzir condutores amadores, ou seja, que não fossem pilotos ou mecânicos assalariados. No dia 30 de junho quando encerram-se as inscrições havia 16 carros inscritos e 3 motos. No dia 1º de julho o ACSP recebe um telegrama de Aarão Reis, presidente do Automóvel Clube do Brasil, pedindo um adiamento da corrida porque o Ministro da Viação, Miguel Calmon Du Pin de Almeida, não poderia comparecer, por causa das festividades do centenário da abertura dos portos. A data foi deixada a critério de Aarão e esse escolhe o dia 26 de julho. O trajeto foi restaurado e entregue 2 semanas antes do evento. No dia 23 de julho é feito um teste de percurso (como fazemos até hoje, nas competições de rallye). Nesse teste estavam presentes os pilotos cariocas Gastão de Almeida e Jorge Haentjens, pilotando dois Lorraine-Dietrich; e dois paulistas Antonio Prado Júnior e Clóvis Glicério, no Motobloc do primeiro (esse carro depois, desceu a Serra do Mar). No dia 25 (sábado), escolhe-se o grid de largada.
Foto oficial do vencedor da corrida em 1908
Era mais um rallye do que efetivamente uma corrida. Cada competidor largava de 5 em 5 minutos (alguns de 7 em 7 por causa da poeira levantada)- a largada foi precisamente as 13:00 horas (na verdade as 12:55 foi dada a largada pelo presidente do Automóvel Club de São Paulo - Antonio da Silva Prado a Jorge Haentjens com seu Lorraine-Dietrich - era o carro mais potente do Brasil - 60hp - fez a prova sem concorrentes - walk-over - e terminou em 1:31':55" - média de 48kph). O secretário de Justiça e da Segurança Pública, proibiu a circulação de veículos - sejam eles motorizados ou não - no período das 13 as 18 horas, em todo o Circuito de Itapecerica (450 policiais estavam dispostos em todo o circuito, para garantir a segurança - aliás, a maior preocupação de Washington Luís - a cada passagem de um competidor, tocava-se uma corneta, para avisar a população). Esses policiais da chamada Força Pública, tinham a seu dispor 3 bandeiras para serem agitadas em caso de emergência: amarela, vermelha e verde. A amarela era agitada para o competidor diminuir a velocidade, a vermelha o competidor tinha que parar e a verde alertava que não havia mais perigo. Era um sistema utilizado - pela primeira vez - numa competição italiana, em 1906 - Targa Florio.
Fotograma do filme da corrida de 1908 em SP
Esse evento teve durante o seu trajeto, várias e várias ambulâncias com médicos de plantão, com a colaboração do exército e dos municípios por onde passavam os competidores. Como não havia postos de gasolina, foram colocados a disposição por empresas estrangeiras, latas de combustível: uma lata de gasolina norte-americana, com 37 litros, era vendida a 16 mil réis, e uma lata de gasolina francesa, com 80 litros, era vendida a 35 mil réis. Eu não sei onde anda, mas gostaria de ver o filme feito: Me parece que um documentário "Brasil - 70 anos" tem imagens, mas onde está o filme feito? Dois cineastas fizeram as cenas deste evento - um dos cineastas era G. Sarracino e o outro era Antonio Leal (ex-fotógrafo da revista carioca O Malho - fundador da Fotocinematografia Brasileira). As fotos aqui colocadas, são em sua maioria fragmentos deste filme.
Luiz Prado e seu Sizaire-Naudin
Fotograma do filme da corrida de 1908 em SP
Os jornais noticiavam que havia 10 mil pessoas na chegada [São Paulo tinha na época 400.000 habitantes - a maior aglomeração foi no Parque Antártica, na Avenida Paulista, na Avenida Municipal (hoje Dr. Arnaldo), e na Rua Cerqueira Cesar (hoje Teodoro Sampaio)]!!! Até os anos 30, para se fazer corridas no Brasil, era necessário importar carros da Europa ou dos Estados Unidos, contudo, em 1931, Cássio Muniz construiu o primeiro carro de corrida do Brasil, com a chamada e disponível "mecânica nacional" (na verdade o motor era importado da Chevrolet). Mas isso... é outra história!
Chegada do vencedor da corrida em 1908
Quais as marcas estavam representadas:
Fotograma do filme da corrida de 1908 em SP
Eram 16 carros de várias marcas, sendo 11 deles produzidos na França (1 inglês, 3 italianos e 1 alemão - todos tinham em comum pneus Pirelli), assim como, as 3 motocicletas inscritas eram francesas.
Delage: origem francesa, produzido pela Automobiles Delage, em Courbevoie, com motor De Dion-Bouton (monocilindro). Em 1906 chega em segundo lugar na Coupe des Voiturettes de Rambouillet e em 1908 chega em primeiro no Grand Prix des Voiturettes de Dieppe. Era pilotado por Antonio Prado Júnior;
Delage 1906
Delage 1906
Lion-Peugeot: origem francesa, produzido pela Les Fils de Peugeot Frères, em Beaulieu-Valentigney, com motor monocilíndrico. Em 1906 chega em segundo lugar na Coupe des Voiturettes de Rambouillet, e em 1908 chega em primeiro lugar na competição organizada pelo Automóvel Club da Itália. Era pilotado por José Prates e Ferrúcio Olivierie;
Peugeot 1904
Sizaire-Naudin: origem francesa, produzido por Louis Naudin (fabricado em 1905, mas o modelo era 1906 - já tinha isso naquela época), com motorização do De Dion-Bouton nomocilindro. Chegou em primeiro lugar na Coupe de l'Auto em 1906, 1907 e 1908, assim como, chega em primeiro lugar na Copa da Sicília, em 1907. Era pilotado por Luiz Prado;
Renault
Berliet: origem francesa, produzido pela Automobiles M. Berliet, em Lyon. Tira o segundo lugar no Tourist Trophy na Inglaterra, em em 1908 ganha a Taça Bolonha. Era pilotado por Paulo Prado;
Clément-Bayard: origem francesa, produzido em Levallois-Perret. O Diatto-Clement era pilotado por Alípio Borba. Os Bayard-Clément eram pilotados por Luis Moraes e Fúlvio Bassi (foto ao lado Diatto em 1908);
NAG: origem alemã, produzido por Allegmeine Elektrizitäts Gerssellshaft (AEG), e comercializado pela Nationale Automobil Gerssellschaft (NAG). Era pilotado por Nag Frederico Otto;
Lorrine-Dietrich na Targa de 1907
Lorraine-Dietrich: origem francesa, produzido pela Société Lorraine des Anciens Établissements De Dietrich et Cie., em Lorena. Em 1906 um de 60hp ganha no Circuito de Ardenas, em 1907 vence o Moscou-São Petersburgo. Eram pilotados por Gastão de Almeida e Jorge Haentjens;
Brown: origem inglesa, com motor de 6 cilindros (modelo 1906). Era pilotado por Ricardo Vilela;
Herald: origem francesa fabricado em Levallois-Perret pela Société Herald. Era pilotado pelo Conde De Lesdain;
Fiat: origem italiana produzido pela Fabbrica Italiana Automobili Torino, modelo 1906 com 4 cilindros. Primeiro e segundo lugar na Targa Florio de 1907, no mesmo ano ganha a Copa do Imperador, o Grand Prix de France, as 24 horas de Morris Park, Moscou-Petersburgo e Goteborg-Estolcomo. Eram pilotados por Sylvio Alvares Penteado e Oswaldo Sampaio;
Griffon: motocicletas de origem francesa, fabricadas pela Société Anonyme Cycles Griffon, em Sena. Os "motoqueiros" das voiturettes de plantão eram: Procópio Ferraz, João Rosas e Eduardo Nielsen.
Curiosidades: estavam presentes o touring car da Light & Power (o único carro elétrico do Brasil, com 15 hp), e um Dumont (o primeiro carro a levar um nome de um brasileiro - Santos-Dumont - tal corro foi lançado em 1902, nos EUA, pela Columbus Motor Vehicle Co., da cidade de Columbia, Ohio - depois de 1904 foi chamado apenas de Dumont - esse carro pertencia a empresa Ferreira & Saraiva - por anda hoje esse Phaeton de 24 hp). Havia um Lorraine-Dietrich (de Jorge Haentjens com um de 60hp, que correu sem concorrentes).
O resultado final foi o seguinte:
Categoria A (motocicletas)
1 Eduardo Nielsen (SP) - Griffon 1:54':48"
2 Procópio Ferraz (SP) - Griffon 2:42'00"
Categoria B (voiturettes de 8-9hp)
1 Antonio Prado Júnior (SP) Delage 2:05':15"
2 Ferrucio Olivieri (SP) Lion-Peugeot 2:05':15"
3 José Prates (SP) Lion-Peugeot 2:30':33"
4 Alípio Borba (SP) Diatto-Clément 2:05':53"
5 Frederico Otto (RJ) NAG 2:18':55"
Categoria C (20-30hp)
1 Jordano Laport (RJ) Renault 1:45':04"
2 Paulo Prado (SP) Berliet 1:51': 28"
3 Alípio Borba (SP) Diatto-Clément 2:05': 53"
4 Frederico Otto (RJ) NAG 2:18':55"
5 Luís Moraes (RJ) Bayard-Clément 2:49':23"
Categoria D (40hp)
1 Silvio Alvares Penteado (SP) Fiat 1:30':05"
2 Gastão de Almeida (RJ) Lorraine-Dietrich 1:57':45"
3 Oszwaldo Sampaio (SP) Fiat 2:41':54"
Categoria E (mais de 45hp)
Jorge Haentjens (RJ) Lorraine-Dietrich 60hp (walk-over) 1:31':55"
E, como dizia Euclides da Cunha: "o automóvel veio libertar a velocidade dos trilhos"
Luis Cezar - texo e algumas fotos retirados da obra de Vergniaud Calazans Gonçalves, "A Primeira Corrida na América do Sul", Ed. Empresa das Artes, 1988, São Paulo.
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