Tem rallies que cheiram a fracasso desde o início. O World Cup 1974 Rally foi um exemplo disso. Em plena crise do petróleo resolvem fazer uma prova de longa distância. Estavam querendo refazer o sucesso do primeiro evento ocorrido em 1970 - aliás, da série World Cup foi a última prova.
Os grandes rallies de longa distância sempre carregam uma carga de aventura - se é uma prova bem organizada e planejada o rallye apesar de duro, pode ser divertido. Mas.... se não for realizado de forma profissional, nem aventura natural salva a prova. Exemplos de sucesso ocorreram em 68 no London-Sydney, em 70 no primeiro World Cup (com o pano de fundo a Copa do Mundo de Futebol) e em 72 no London-Sydney Marathon (com o pano de fundo os Jogos Olímpicos)... e nessa esteira em 74 ocorreu o Londres-Munique, organizado pelo Wylton Dickson.
Roteiro inicial - descartado depois
Wylton convenceu Dean Delamont - presidente do RAC que era uma ótima ideia, e este fez esforços para conseguir o patrocinador - o que se conseguiu foi a UDT - United Dominions Trust (era uma empresa financeira tida como a maior empresa no setor de empréstimo de valores, para compra de veículos). Quem levantou a rota foi o mítico e famoso co-piloto britânico Henry Liddon e pelo preparador Jim Gavin (foi piloto no London-Sydney do Escort 1300 GT). Ou seja, RAC, dinheiro e profissionais do rallye, não podeira dar errado... originalmente a partida seria em Wembley, passando pela França, Espanha, Portugal, entrava pelo norte da África, atravessava o Mar Morto, Oriente Médio, entrando na Russia, voltando pela Europa do Leste até a Alemanha. But...
Esse Escort MK1 foi usado para o levantamento do roteiro
Idem com o piloto desatolando o Escort
No mapa o roteiro era legal, contudo, a situação politica era grave em alguns paíes. Vide o cuidado com que os organizadores do London-Sydney Marathon de 68, evitaram os atritos entre Índia e Paquistão; ou os organizadores que fizeram um acordo em El Salvador e Honduras, no London-México de 70. As questões politicas inviabilizaram o roteiro acima (além do componente da crise do petróleo de 73). Estão notando que a coisa está ficando feia... ah... coisa ruim não chega desacompanhada: outro mítico da Ford - Stuart Turner anunciou que a Ford não iria participar do rallye, como havia participado no primeiro World Cup (onde os 5 primeiros colocados eram Ford Escort) - o organizador Dickson teve que ouvir do Stuart que ele e toda a organização era irresponsável, em realizar um rallye de longa distância, passando por vários países, em plena crise do petróleo (vocês não devem esquecer que muitas provas de motorsport, de 1974 foram canceladas para economizar combustível - além do medo da OPEP). A Ford foi acompanhada por inúmeras outras montadoras... (inglesas ou não). A UDT achava que times works não eram tão importantes assim - portanto - ficava no patrocino.
Roteiro Final
Bom... passada essa tempestade, os organizadores pediram para a dupla Liddon e Gavin, para levantar um novo roteiro, principalmente pela África... pegaram um Escort RS1600 (ai que inveja, ainda mais com motor BDA), e partiram. Muitos países, vetaram a entrada do rallye (Russia principalmente) e consequentemente, países do bloco socialista (isso sem contar que a Federação Russa estava fora do mundial de futebol). Traçaram o roteiro com o que havia... nem vou descrever o roteiro, mas ficou em 17.300 kms. Tem um post muito bom (Los Grandes Rallies-Maraton), no site do CUAS (de Montevidéu, escrito por Augusto Basigaluz - ali ele descreve em detalhes o trajeto e legs - e o que ocorreu nelas).
O amigo do Dickson, Ken Tubman, mandou um cheque em branco, para ser preenchido como sendo o valor a ser cobrado por sua participação (seria o valor da inscrição).... ele gostava de ser o primeiro a se inscrever, assim ele havia feito no London-Sydney de 68 e no London-México de 70. Agora, fazer um rallye curto ou médio, você não precisa fazer uma grande preparação para fazê-lo... as inscrições no UDT iam bem devagar e os times esperavam atingir o número técnico (o número mínimo de inscrições), para preparar seus carros para correr 20 mil kms. Ah... esqueci... os clubes ingleses também eram contra a participação neste rallye. Apesar disso, muitos ralizeiros de nome, confirmaram a presença e a organização convidou outros. Entre os ralizeiros estavam Evan Green, Bob Neyret, Patrick Vanson, Claudine Trautmann, Sobieslaw Zasada, Brian Chuchua, Eric Jackson, Ken Tubman, John Hemsley, Doug Harris, Andrew Cowan, Johnstone Syer, Alfred Kling, Ivica Vukoja, Innes Ireland e Keith Schellemberg. Em 74 - ou seja - no mesmo ano, houve um rallye de milhares de km, chamado Líbano-Siria - tinha muito mais estrelas famosas do mundo do rallye, do que neste World Cup... Bom.... uma curiosidade: O Stirling Moss voltava ao motorsport depois do seu famoso acidente em F1. O Shekhar Mehta pilotava uma Lancia Fulvia 1600 HF works - aliás o único carro de time oficial.
O S. Moss e seu co-piloto pareciam ter saído daquela série Banana com Pijamas, ou parecem presidiários da Legião Estrangeira
O briefing do Henry Liddon deveria ser ouvido atentamente... principalmente aos semi-profissionais. Ele disse que havia percorrido duas vezes a rota do Saara e era uma fase muito difícil. Disse que o London-México de 70 foi num trajeto longo e duro, mas esse seria mais duro, mais longo e mais quente. O final do briefing foi: creiam.... vocês estão entrando num território muito perigoso - não o subestimem. Adivinha só!? E.... no dia 5 de maio de 74, largaram 52 carros dos 70 inscritos (fala a verdade - 18 carros não largaram... sorte a deles). As 12h00 em Wembley o carro #1 largou sem quebrar (kkkk), era um Range Rover de um time alemão (Rainer Ising e Hans Ludorf). Acreditem, estavam todos a um rumo incerto além de passar pela chamada Porta do Inferno, ao entrar no Saara.
Quase a 90 km de In Salah as coisas ficaram complicadas para níveis impensáveis - as notas tomadas por Liddon e Gavin (impressas no Road Book), indicavam que tendo viajado 89,5 quilômetros de estrada pavimentada esta terminava, dai o time deveria em seguida, ter virado à esquerda a 142° na leitura da bússola dirigindo-se para o deserto, para encontrar a antiga estrada que corria paralela à direita. Esse caminho levaria direto para Tamanrasset. A indicação no road book era muito clara ... o problema é que após o levantamento feito por Liddon e Gavin meses atrás, a estrada ainda estava em construção, contudo o asfalto continuou além da indicação de 89,5 km no Livro de Bordo... pronto - instalou-se a dúvida levando muitos para o deserto... O que fazer? Se aceita como correta a informação, vira antes dos 90km, ou segue-se em frente, até acabar o asfalto. E o pior, é que havia uma indicação de "Bad Notice" no Road Book que ninguém sabia o que era.
No final da página 21, vemos uma indicação de que, se estiver a estrada estiver já reformada, use o caminho até o fim e em seguida (topo da página 22), o time deveria atravessar a planície com um curso de 142°. Como a estrada em construção continuava além do 89,5km a maioria dos concorrentes continuou até o fim e só então descobriram.... nada. Nesta mesma página 22, vemos duas referências curiosas. Uma delas é que para chegar a mesquita era obrigatória dar 3 voltas ao redor dela para que, segundo as autoridades, daria segurança ao viajante que cruza o deserto. A outra referência é o cartaz de "Wasteland", colocada nessa área desde os testes nucleares que foram realizados pelos franceses. Outra referência que ninguém entendeu foi a da placa Bad Notice! Enfim a maioria dos competidores ficou vagando pelo deserto. Dos 32 carros inspecionados em In Salah, apenas alguns dobraram quando necessário. Como foi que eles conseguiram tomar o caminho certo? No dia seguinte só seguiram a rodovia para Kano apenas seis carros: Vanson, Neyret, Trautmann, Dacremont, Innes Ireland e Hemsley.
Claro que a organização perdoou os erros cometidos - além do que estavam espalhados por 1000 kms inúmeros carros quebrados, isso sem contar os carros perdidos no deserto que não se sabia onde estavam já havia 2 dias.
Ah... mas teve time brasileiro que participou... com um VW Brasília - um carro brasileiro muito - mas muito feio. Chegou até o final e se classificaram nos últimos lugares, mas chegaram - apesar das quebras. No final deste post há filmagem feita por eles... Era uma dupla gaúcha tendo como piloto o Cláudio Mueller e como co-driber o Carlos Guido Weck - há sites e blogs que glorificam esse rallye como o mais duro do mundo (o que é mentira - foi duro mas não foi o mais duro), que a FIA proibiu essa prova depois desta edição (o que é mentira...), e que a Brasília se comportou muito bem (o que é mentira...), etc... Bom... dizem que os gaúchos glorificam seus feitos... fazem eles muito bem. O que sobrou desta Brasília foi o capô - a que está no museu do Trevisan em Passo Fundo, sequer é uma recriação, mas um carro-homenagem. Dos 19 que conseguiram se classificar, os brasileiros ficaram em décimo sexto (16) lugar - mas resta falar que não cumpriram todo o trajeto. Aliás, somente - repito - somente 5 carros completaram full rally distance.
Sobre os carros que cumpriram todo o trajeto apenas o Citroen ganhador e a Lancia Fulvia do Shekhar Mehta, fizeram o loop 171 km nas montanhas de Hoggar na transição para o sul da Argélia. Aliás o Escort do Eric Jackson e Bob Bean também completou o loop, mas tiveram que voltar para Tamanrasset para consertar a suspensão que quebrou no Níger. Em todo o caso - parabéns a todos que terminaram esse equivocado rallye.
Os ganhadores
Resultado Final
Pos | Pilotos | Carros | Time Penalties |
---|---|---|---|
1 | André Welinski / Ken Tubman / Jim Reddiex | Citroën DS 23 | 15h 27m 30s |
2 | Christine Dacremont / Yveline Vanoni | Peugeot 504 | 43h 55m 01s |
3 | Robert Neyret / Jacques Terramorsi | Peugeot 504 | 61h 25m 41s |
4 | Claudine Trautmann / Marie-Odile Desvignes | Peugeot 504 | 78h 35m 41s |
5 | James Ingleby / Robert Smith | Jeep CJ-6 | 123h 58m 23s |
6 | Patrick Vanson / "Jacquy" | Citroën DS 23 | 212h 40m 47s |
7 | Eric Jackson / Bob Bean | Ford Escort | 235h 36m 14s |
8 | Ali Sipahi / Asmi Avcioglu | Murat 124 | 245h 20m 25s |
9 | Basil Wadman / Michael Hillier / Chris Lentz | Peugeot 504 | 245h 55m 26s |
10 | Claude Laurent / Jacques Marchè | Citroën GS | 249h 21m 03s |
11 | Ed Golz / Fred Baker | BMW | 263h 19m 51s |
12 | Rainer Ising / Hans Ludort | Range Rover | 287h 25m 11s |
13 | Evan Green / John Bryson | Leyland P76 | 294h 38m 14s |
14 | Stephen Kimbrell / Gary Whitcombe | Rover P6 3.5 | 303h 02m 01s |
15 | Andrew Cowan / Johnstone Syer | Ford Escort RS2000 | 311h 20m 00s |
16 | Carlos Weck / Claudio Mueller | Volkswagen Brasilia | 324h 11m 49s |
17 | Kurt Reinhard / Ole Pedersen | BMW | 351h 02m 42s |
18 | Bryan Wood / Edward Meek | Ford Escort | 378h 33m 03s |
19 | Derek Tullet / Alan Gaunt | Ford Capri | 455h 34m 08s |
Esse foi o carro feito em homenagem
Esse foi o carro verdadeiro
Luis Cezar
Um comentário:
Muito legal a reportagem, uma Brasilia 1974 no meio dos melhores carros da época, com apoio das fabricas. Alias este ano foi um ano Frances, tendo ate uma dupla feminina francesa em terceiro lugar. E dos alemaes nem Mercedes, nem Porsche chegou ao fim ! Dos carros brasileiros de 74, so sendo motor de fusca para chegar ao fim. Pelo que vi no filme, eles mesmo levavam os pneus, ferramentas, etc, ou seja acho que nao tinham carro de apoio. Bom mesmo chegando entre os ultimos, a expectativa era bem
menor que o da seleção brasileira, campea em 70, e q tbem nao chegou a final em 74.
Abraço e bons rallyes
Mario Lott
Postar um comentário